A santa africana do Brasil
11 de outubro de 2017São três os fatores que fazem a imagem da santa padroeira do Brasil ser negra: devido ao tempo em que ficou nas águas do Rio Paraíba do Sul, no interior de São Paulo antes de ser encontrada pelos pescadores; também por causa do material de terracota, de que foi feita; e em razão às velas acesas por pessoas simples da região ao redor da escultura que ficava em uma pequena capela. Entre os primeiros devotos, muitos africanos e descendentes veneravam a imagem.
"Eram velas rústicas, feitas de cera nativa que deixavam não apenas a fumaça, mas faziam uma espécie de fuligem que, com o passar do tempo, acabou se impregnando na imagem", relata padre José Inácio de Medeiros, superior dos missionários Redentoristas em São Paulo. São eles os religiosos que cuidam e administram hoje o espaço.
Padre José Inácio explica que Aparecida é uma santa africana sem ser concebida na África, mas porque o culto a ela foi desenvolvido por africanos e pessoas pobres que moravam na região. Hoje o lugar leva o nome da santa, no interior de São Paulo.
Só depois de mais de dez anos do aparecimento da imagem é que o nome Aparecida chegou ao alto clero. Tão logo, recebeu a homenagem de dez papas, durante 300 anos de história.
Ao longo desses três séculos, diversas publicações e livros já ressaltaram as raízes de Aparecida com a África. Negra, simples, pequena e rodeada por milhões de fiéis de diversas partes do mundo.
Sangue escravizado
A cor de canela da escultura tem sido interpretada como um vínculo simbólico com a mistura racial da população brasileira. E um dos primeiros milagres operados por intercessão de Nossa Senhora Aparecida terá sido a libertação de escravos acorrentados.
Conta-se que em 1850, um escravo chamado Zacarias passou em frente ao santuário de Nossa Senhora Aparecida. Ele seguia escoltado por um feitor e com os pulsos atados por correntes. O escravo terá pedido permissão para rezar diante de Nossa Senhora Aparecida e, milagrosamente, as correntes terão caído, deixando-o livre.
Ainda hoje é possível ver as correntes que se soltaram sozinhas no teto da Sala dos Milagres, no subsolo da Basílica. Um grande complexo foi construído na cidade de Aparecida, incluindo o maior estacionamento da América Latina, com capacidade para 6 mil veículos.
Para o padre José Inácio de Medeiros, as ligações com o continente africano vão além da imagem negra, mas também na forma de se celebrar a santa afro-brasileira.
"O sangue negro é muito forte na raça brasileira, há o fenómeno da miscigenação, mas há também esse fenómeno do sangue, que marca não apenas o Brasil, mas outras regiões do nosso continente latino-americano. O povo africano tem uma maneira muito festiva, muito alegre de celebrar a fé. E essa alegria e essa festividade se notam aqui no santuário, onde as pessoas podem livremente manifestar a religiosidade".
"Rainha" do Brasil
Nossa Senhora Aparecida representa a imagem da Virgem Maria, mãe de Cristo, figura bíblica normalmente retratada em pinturas com a pele branca ou morena.
O culto mariano, como é chamada a devoção a Maria, ultrapassa os mil milhões e meio de pessoas em todo o mundo. A simbologia nesta fé mostra que a santa costuma assumir, em algumas situações, o rosto de um determinado povo que vive em estado de opressão. Foi assim em Lourdes, na França, quando Maria assumiu características de camponesa e no México, onde Nossa Senhora de Guadalupe apresenta traços indígenas.
No caso de Nossa Senhora Aparecida, este nome é porque a imagem foi encontrada, em 1717, pelos pescadores Domingos Garcia, João Alves e Filipe Pedroso.
Encontrada nas águas
Os três não estavam confiantes que a pesca seria boa e fizeram uma oração para que tivessem peixes suficientes e receber bem o governador do estado que estava de passagem pela região de Guaratinguetá, no interior de São Paulo. Lançaram as redes no Rio Paraíba do Sul e veio o corpo de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, santa muito comum na cultura portuguesa daquela época. Espantados jogaram a rede novamente e recolheram a cabeça.
Aproximadamente, quatro milhões de escravos que foram trazidos para o país ao longo de um período de 300 anos, pelo menos quatro vezes mais do que para os Estados Unidos. O Brasil foi o último país a abolir o tráfico de escravos, em 1888. Mais de metade dos brasileiros agora se identificam como negros ou de raça mista, de acordo com o mais recente recenseamento.
Virgens negras
O Vaticano reconhece mais 200 representações da Virgem Maria negra pelo mundo. O diferencial de Aparecida, santa considerada padroeira do Brasil desde 1930, é que a cor de Aparecida serve de ligação com as raízes africanas. O formato triangular é devido ao manto que foi doado pela princesa Isabel, por ter conseguido engravidar depois de orações à Virgem. Foi a princesa que assinou a lei de libertação dos escravos no Brasil, em 1888.
Curiosamente, em 1894 padres alemães saíram de um santuário de outra Virgem negra, a de Altötting, na Baviera, Alemanha, para organizar melhor as atividades do santuário de Aparecida. Eles trabalharam ao lado da comunidade local, principalmente de africanos que aderiram ao culto da santa.
Popularidade para além da religião
A basílica, que guarda a imagem, é a maior do mundo dedicada a Virgem Maria; tem capacidade para 45 mil pessoas. A igreja fica ao lado do lugar onde os três pescadores encontraram Aparecida. A área está localizada entre as duas maiores cidades brasileiras da atualidade: a 180 km de São Paulo e a 260 km do Rio de Janeiro. A cidade se chama Aparecida, assim como diversas mulheres brasileiras.
Diversas celebridades e intelectuais brasileiros na internet demonstraram interesse em ir à Aparecida este ano para participar das celebrações, por exemplo a cantora Maria Bethânia que tem expressado um carinho especial ao nome da considerada mãe do Brasil.
Para marcar esta ligação afro-brasileira, o Museu Afro-brasileiro, de São Paulo, reuniu cerca de 400 obras retratando a história da Santa Negra. Em ritmo de celebração, o Centro de Arte Popular - Cemig, em Belo Horizonte, no estado brasileiro de Minas Gerais, também está com exposição reunindo 300 diferentes imagens de Aparecida.