"Depois da paz, democracia ainda deve crescer em Moçambique"
4 de outubro de 2012No próximo dia 4 de outubro, feriado nacional em Moçambique, serão comemorados os 20 anos da assinatura do Acordo de Paz entre os antigos rebeldes da RENAMO e o governo da FRELIMO, que se opuseram numa guerra civil que durou 16 anos.
Revendo o Boletim oficial da República de Moçambique publicado no dia 14 de outubro de 1992 - documento que oficializou a paz no país - o hoje ministro italiano da Cooperação Internacional, professor Andrea Riccardi, que junto com a equipe de mediadores da Comunidade de Santo Egídio ajudou a criar o Acordo Geral de Paz de Moçambique 20 anos atrás, conta que jamais deixou de acreditar que o fim do conflito civil fosse possível: "Eu sempre acreditei. Penso que, junto com Dom Matteo Zuppi, fomos os arquitetos da aproximação entre as partes que não se falavam", disse o fundador da Santo Egídio, em entrevista exclusiva à DW África.
De um lado, estava o governo da Frente de Libertação de Moçambique, FRELIMO, do então presidente Joaquim Alberto Chissano. De outro, a Resistência Nacional Moçambicana, RENAMO, de Afonso Dhlakama.
O ex-mediador Andrea Riccardi levanta hipóteses sobre o que poderiam ter pensado ambas as partes antes da primeira ronda de negociações: "Grande era o risco de que um [FRELIMO] dissesse ao outro: 'Senhores bandidos armados' e os outros [RENAMO] dissessem: 'governo ilegítimo'".
Na época das negociações de paz, que duraram cerca de dois anos, um personagem fundamental conseguiu superar a resistência de aproximação da RENAMO: Dom Jaime Gonçalves, Bispo da Beira, como lembra Riccardi: "Foi um discurso importante para explicar à RENAMO que eles não tinham outra saída a não ser negociar. Depois, houve também um amadurecimento por parte do governo de Chissano", disse o atual ministro italiano da Cooperação Internacional.
Diplomacia italiana
Uma decisão chave dos mediadores da Santo Egídio, uma comunidade de leigos católicos com sede na Itália, que durante dois anos e três meses negociou a paz em Moçambique, foi envolver a diplomacia italiana. "Solicitamos ao governo italiano – que na época tinha um grande prestígio em Moçambique – a nomear um representante, que foi Mario Raffaelli".
Mas se a comunidade internacional já começava a olhar com atenção as tentativas para terminar a guerra civil, que desde 1976 tinha devastado o país, internamente Moçambique tinha alguns conflitos que impediam o país avançar à tão sonhada estabilidade. "As relações entre o governo moçambicano e a Igreja Católica eram péssimas e só melhoraram quando eu, junto com a Comunidade de Santo Egídio, tomei a decisão de promover um encontro entre Dom [Jaime] Gonçalves e o secretário do Partido Comunista Italiano, Enrico Berlinguer, que interveio pessoalmente junto à FRELIMO para que esta promovesse uma mudança na sua política religiosa", explicou Riccardi à DW África.
Apesar de todos os esforços, em Moçambique quase ninguém acreditava que uma organização não governamental internacional pudesse ajudar a estabelecer os rumos de um futuro sem guerra.
"Foi a necessidade das duas partes, do governo e da RENAMO, que levou a Comunidade de Santo Egídio a desempenhar este papel para criar um acordo. A opinião pública ironizou, exerciam pressões. Mas, depois de longas tentativas, longos silêncios e dificuldades chegamos a um acordo", relata Andrea Riccardi.
Porém, segundo ele, "as duas partes deveriam, ainda, amadurecer. Em particular a RENAMO, que deveria passar da luta armada à luta política. Havia um grande salto a ser feito".
Perguntado se, passados 20 anos do Acordo Geral de Paz de Moçambique, Andrea Riccardi mudaria alguma coisa em Moçambique, o professor respondeu: "Acredito que um dos grandes problemas seja que a RENAMO deveria se transformar em [verdadeiro] partido de oposição para um [efetivo] funcionamento bipartidário da democracia em Moçambique. Entretanto, acredito que todos tenham respeitado os acordos: o governo e a RENAMO que jamais voltou às armas".
Ainda olhando para o futuro, Riccardi fez uma crítica construtiva de quem ajudou a levar a paz a Moçambique: "Acredito que a democracia em Moçambique deva crescer. Mas não existem ameaças no sentido daquilo que houve no passado. Contudo, quando eu estive no Parlamento, em Maputo, e vi os guerrilheiros sentados nas cadeiras da oposição, não posso esconder que aquilo me comoveu".
Crimes a punir?
Evocando os protocolos do Acordo Geral de Paz de 1992, Riccardi respondeu à questão sobre se os crimes da guerra civil deveriam ou não ser investigados e tornados públicos numa Comissão da Verdade e Acolhimento.
"Moçambique fez outra escolha: a anistia. Esta foi a escolha de Moçambique porque os crimes e as violências foram praticados por ambos os lados. Temos que esperar os moçambicanos do futuro", avalia.
Interesses económicos
Para este futuro, Riccardi acha que a democracia em Moçambique ainda precisa crescer, mas que "um grande bem estar está a aproximar-se. A presença da empresa petrolífera italiana [ENI, que estuda descobertas de gás natural na bacia do Rovuma, em Cabo Delgado, no nordeste do país] é algo a ser considerado. Há um grande crescimento de interesses económicos e a sociedade deve harmonizar-se com isso".
Interrogado sobre se esta é uma visão do ministro italiano da Cooperação Internacional, Riccardi disse não saber: "É uma visão de um grande amigo de Moçambique, que conheceu o país quando a fome o assolava, quando no mercado central de Maputo tinha somente peixe seco. Hoje, em vinte anos, a história realmente mudou", acredita.
Por outro lado, segundo Riccardi, "existe muita pobreza em Moçambique. Existe um problema de distribuição do bem-estar, mas para criar algo diferente é preciso que uma nova sociedade crie raízes".
Autor: Rafael Belincanta (Roma)
Edição: Renate Krieger/António Rocha